A vereadora que era filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Marielle Franco, tinha apenas 38 anos quando foi executada. Ficou conhecida nacionalmente por apresentar 16 Projetos de Lei na Câmara dos Vereadores que abordavam o reconhecimento dos direitos humanos e a igualdade de gênero. Além de denunciar abusos dos Policiais Militares em relação à favela, pois os mesmos utilizavam da autoridade e agiam de má-fé e violência, segundo a vereadora. Em seus posts nas redes sociais demonstrava indignação pela tamanha crueldade de jovens assassinados por PMs e milícias nas favelas do Rio. Na noite de quarta-feira, 14 de março, o carro no qual estava foi atingido por no mínimo doze tiros, levando a morte do motorista Anderson Pedro Gomes e a vereadora Marielle Franco.
O Observatório lamenta este ocorrido, pois ninguém merece ter a sua vida tirada de uma maneira tão cruel. Com sua morte, veio à tona, várias manifestações contra a violência, veio também o questionamento sobre a Intervenção Federal no Rio de Janeiro e a tristeza em saber que a impunidade se afirma cada vez mais. Sobre esta situação, divulgamos o texto a seguir, de Frei Betto.
SOMOS TODOS(AS) MARIELLE
Frei Betto
Os assassinatos da vereadora Marielle Franco, do PSOL, na noite de 14 de março, no Rio, e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes, equivalem ao do estudante Edson Luis, no Calabouço, em 28 de março de 1968. Este representou o desmascaramento da ditadura militar e de sua natureza cruel, sacramentada pelo AI-5, a 13 de dezembro de 1968.
Agora, o crime organizado escancara suas impressões digitais e proclama que é o dono do pedaço carioca. Não pretenda a intervenção militar extirpar o conluio entre a banda podre da polícia e o narcotráfico, nem ousar defender os direitos humanos dos moradores de favelas. Este o recado dado.
Os tiros que ceifaram a vida de Marielle atingem todos nós que lutamos para que, nas palavras de Jesus (João 10, 10), “todos tenham vida e vida em plenitude”. A morte dos mártires comprova que em vão a injustiça busca predominar sobre a justiça. Gandhi, Luther King, Chico Mendes são apenas alguns exemplos de como os mortos comandam os vivos.
Em fevereiro de 1987, na Moscou que ainda era a capital da União Soviética, vi imensa fila à porta do cinema próximo à rua Arbat. Exibia-se O arrependimento, transformado em símbolo da glasnot por ter sido proibido durante dois anos, embora seu diretor, George Abuladze, o tenha realizado sob a proteção do então primeiro-secretário do Partido na Geórgia, o ministro das relações exteriores de Gorbachev, Eduard Shervadnadze.
Consegui entrar. O filme, todo gravado na língua da Geórgia, é legendado em russo. Mas a forte beleza das imagens me permitiu entender o roteiro. Trata-se da história do prefeito de uma pequena cidade. Usava bigodinho tipo Hitler, camisa preta ao estilo de Mussolini e cruzava os braços como Stalin. Quando morreu, todos choraram, exceto uma mulher que vivia de fazer bolos em forma de igrejas. Ela era uma das vítimas da prepotência daquela autoridade e insistia em manter o cadáver insepulto. Desenterrava-o a cada noite, para que ninguém se esquecesse daquele que encarnara a opressão.
Marielle é, hoje, uma mulher insepulta. Seu exemplo de vida, seus ideais políticos, sua garra em prol das comunidades marginalizadas nas favelas e das crianças e jovens excluídos de direitos básicos como educação, haverão de perdurar em todos nós que fizemos da vida oferenda destemida para que todos tenham vida.
Somos todos (as) Marielle!
Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de sangue” (Rocco), entre outros livros.
Foto Marielle: Página Obseve